quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Do teatro de revista às adaptações da Broadway, musicais se tornaram milionários no Brasil

GUSTAVO MARTINS
Da Redação
Emerico / Folha Imagem
Bibi Ferreira e Paulo Autran na montagem "Minha Querida Lady", de 1962, primeira adaptação da Broadway no Brasil
SÃO PAULO TEM CURSO DE TEATRO MUSICAL
VEJA MUSICAIS QUE MARCARAM ÉPOCA NO BRASIL
O sucesso dos musicais no Brasil está longe de ser um fenômeno recente. Desde a primeira metade do século 20, com o teatro de revista, até hoje, com os suntuosos cenários e figurinos trazidos da Broadway, os espetáculos teatrais cantados agradam platéias no país. Se há diferença relevante entre os dois momentos, esta é a profissionalização do novo mercado de musicais - que já levou mais de três milhões de espectadores aos teatros e tem até curso profissionalizante para atores do gênero.

Antes do primeiro espetáculo da Broadway ser trazido para São Paulo ("Minha Querida Lady", adaptação de "My Fair Lady" protagonizada por Paulo Autran e Bibi Ferreira em 1962), o Rio de Janeiro já tinha uma forte tradição do chamado teatro de revista, gênero em que o enredo servia de ligação entre esquetes cômicos, musicais ou coreografados.

Após um período de glória nas décadas de 50 e 60, o musical de entretenimento perdeu espaço para uma dramaturgia mais politizada, notadamente em criações de Chico Buarque como "Roda-Viva", "Ópera do Malandro", "Calabar" e "Gota D'Água". O produtor e letrista Claudio Botelho, responsável pela tradução de quase todas as montagens recentes de espetáculos da Broadway, acredita que o período de repressão militar fez com que o teatro se transformasse em um "lugar de resistência". "É por isso que algumas pessoas do meio ainda ficam surpresas que os musicais estejam fazendo sucesso", afirma.

Nos anos 80 e início dos 90, algumas produções musicais esparsas tiveram êxito, como "A Chorus Line", de 1983, na qual Cláudia Raia apareceu aos 16 anos, e "Cabaret", de 1989, ambas em São Paulo. Responsável pela produção das duas montagens, o diretor Jorge Takla recorda que as dificuldades eram muito maiores do que hoje: "Não tínhamos lei de incentivo, nem elenco preparado, nem lugares que comportassem o espetáculo". Takla dá como exemplo o Teatro Sérgio Cardoso, onde foi montado "A Chorus Line" mesmo sem o espaço necessário para acomodar a orquestra de um musical. "Foi um teatro mal concebido para isso, infelizmente."

O Rio de Janeiro também não era uma seara fértil para musicais na primeira metade dos anos 90. "Hoje existem esses orçamentos milionários, mas, quando fui montar 'Hello Gershwin' com o Marco Nanini em 1991, tivemos as mesmas dificuldades que todo mundo: teatro pequeno, horário alternativo, nenhum dinheiro", recorda Claudio Botelho.

Ennio Brauns / Folha Imagem
Cena de "Rent", montagem de 1999 que deu início a uma nova série de espetáculos da Broadway em São Paulo
Retomada
A primeira etapa da volta dos musicais ao gosto do público aconteceu no Rio de Janeiro, com as peças montadas em torno da vida de personalidades consagradas da música, utilizando suas canções como fio condutor do enredo. "Elas por Ela", de 1989, foi um protótipo do gênero, com Marília Pêra interpretando diversas cantoras brasileiras. Mas é a partir de meados dos anos 90 que musicais como "O Samba de Valente Assis" (sobre Assis Valente), "O Abre-Alas" (Chiquinha Gonzaga) e "Somos Irmãs" (Linda e Dircinha Batista) estabelecem um público cativo por esse tipo de montagem - que, por sinal, faz sucesso até hoje, tanto no Rio como em outras capitais, em peças como "Cauby! Cauby!" (2006), "Renato Russo" (2007) ou "Divina Elizeth" (2008).

Com a estréia de "Rent" em 1999, no Teatro Ópera, em São Paulo, tem início a segunda etapa do renascimento dos musicais: as adaptações da Broadway. Os orçamentos generosos, auxiliados por leis de renúncia fiscal, permitiram a realização de grandes montagens e aceleraram a profissionalização no setor. No elenco de "Rent" já podiam ser encontrados alguns atores que fariam carreira em musicais: o protagonista Daniel Ribeiro, que dirigiu "Cazas de Cazuza" em 2000; Alessandra Maestrini, hoje no programa "Toma Lá Dá Cá" da TV Globo, que teria papel de destaque em "Les Misérables"; e Bianca Tadini, de "O Fantasma da Ópera", "O Mágico de Oz" e "West Side Story", entre outros.

Não foi um começo unânime, porém: o tradutor Claudio Botelho dá "graças a Deus" por não ter participado da montagem de "Rent", que para ele "não era séria". A atriz Bianca Tadini, que fez parte do elenco da peça, concorda que esta deva ser encarada como um dos "testes" que a multinacional Time 4 Fun (ex-CIE) fez antes de "Les Misérables", seu primeiro grande investimento (US$ 3,5 milhões, quase R$ 5,9 milhões em valores atuais). Os outros testes aconteceram em 2000, com resultados animadores: "Vitor ou Vitória", dirigido por Jorge Takla, atraiu 80 mil espectadores; "O Beijo da Mulher-Aranha", com Cláudia Raia e Miguel Falabella no elenco e direção de Wolf Maia, outros 120 mil.

Broadway paulistana
Com a estréia de "Les Misérables", em 2001, os números começaram a ficar realmente superlativos. A começar pela reforma do Teatro Cine-Paramount, no centro de São Paulo, bancada pela CIE e pelo Grupo Abril ao custo de R$ 12 milhões (a partir de então, a construção passou a se chamar Teatro Abril). Coincidentemente, além de ter sido o primeiro cinema sonoro da América Latina e de ter abrigado os festivais da TV Record nos anos 60, foi no mesmo Teatro Abril que aconteceu a montagem de "Minha Querida Lady" em 1962.

Mila Maluhy / Divulgação
Palco de "Les Misérables" trazia inovações como uma base giratória e maior vão livre para os cenários
Jorge Takla, que em 2002 passaria a comandar a divisão de teatro da CIE, considera a reforma do Teatro Abril um marco: "Era uma coisa pela qual lutávamos durante muitos anos. Foi muito rico não só para os musicais, que puderam ser apresentados com qualidade, mas também para todos os profissionais envolvidos, que puderam aprender muito com a tecnologia que foi trazida".

O espetáculo inaugural do Teatro Abril, "Les Misérables", atraiu 350 mil espectadores nos 11 meses que ficou em cartaz. A estrutura, com palco giratório e uma equipe de 150 pessoas, era algo inédito no teatro nacional - incluindo os salários, muito acima do praticado no país. A direção ficou a cargo do inglês Ken Kaswell e do brasileiro Helzer de Abreu, que já tinha participado de "Rent", e a produção coube ao argentino Billy Bond, ex-vocalista da banda Joelho de Porco e diretor de shows Ney Matogrosso nos anos 70.

Invasão brasiliense
Além de mostrar a luta de Jean Valjean, interpretado pelo curitibano Marcos Tumura (hoje o Engenheiro de "Miss Saigon"), "Les Misérables" foi palco de uma "invasão brasiliense" de cantores: dos dez papéis principais, sete foram conquistados por candidatos de Brasília, entre eles Saulo Vasconcelos, Fred Silveira e Sara Sarres, que continuam atuando em musicais até hoje. Todos orbitavam a companhia amadora de musicais formada por Marconi Araújo, que também foi chamado para a direção musical do espetáculo no Teatro Abril.

Tuca Vieira / Folha Imagem
Saulo Vasconcelos, um dos cantores de Brasília que veio trabalhar em São Paulo em musicais como "O Fantasma da Ópera" (foto)
"Eu conheci o Marconi quando éramos da Universidade de Brasília, ele estava prestes a se formar e teve essa idéia maluca de montar 'Jesus Cristo Superstar'", relembra Fred Silveira, que estudou composição e regência na UnB e hoje é o protagonista de "West Side Story". Saulo Vasconcelos, dono do papel principal no musical mais visto até hoje no Brasil ("O Fantasma da Ópera", de 2005, 880 mil espectadores), lembra com bom humor da época amadora: "Ganhei R$ 800 para fazer oito apresentações de 'Bela e a Fera'. Eram montagens simples, mas lotavam o Teatro Nacional". A coreógrafa Fernanda Chamma, que trabalhou com boa parte dos atores que viriam a formar o elenco de "Les Misérables", elogia Marconi Araújo: "Ele é um gênio. Quando os gringos viram como ele tirava água de pedra, ficaram loucos".

Uma semana após o fim da temporada vitoriosa de "Les Misérables", o Teatro Abril já estava recebendo os contêineres com 130 toneladas de equipamentos e cenários de "A Bela e a Fera", que estreou em 2002 com mais que o dobro do orçamento: US$ 8 milhões (R$ 13,5 milhões em valores atuais). O sucesso também foi grande: 600 mil espectadores em 19 meses de temporada.

Novos produtores
Enquanto a CIE passou a revezar musicais de grande e muito grande investimento ("Chicago" em 2004, US$ 2 milhões e 90 mil espectadores; "O Fantasma da Ópera" em 2005, US$ 10 milhões e 880 mil espectadores; "Sweet Charity" em 2006, US$ 2,5 milhões e 85 mil espectadores; "Miss Saigon" em 2007, US$ 12 milhões, ainda em cartaz), outros produtores também começaram a fazer adaptações da Broadway, apoiados no interesse de patrocinadores por meio de leis de incentivo.

Caio Guatelli / Folha Imagem
Miguel Falabella, Juliana Paes e Vladimir Brichta em "Os Produtores", de Mel Brooks
Billy Bond fez "O Mágico de Oz" em 2003 (primeira adaptação a viajar para fora do eixo Rio-São Paulo) e "Pinocchio" em 2007; Jorge Takla montou "My Fair Lady" em 2007 e "West Side Story" em 2008; Sandro Chaim associou-se a Miguel Falabella para adaptar "Os Produtores" em 2007; e uma nova produtora, a Break a Leg, trouxe "Aída" para uma curta temporada em 2008 no Teatro Cultura Artística, em São Paulo.

Enquanto isso, os musicais nacionais também vivem dias de glória: a "Ópera do Malandro" de Chico Buarque ganhou duas montagens de sucesso, em 2000 com Gabriel Vilela e em 2003 pelas mãos da dupla Charles Möeller e Claudio Botelho - esta última, além de ficar três anos em cartaz, fez bem-sucedida turnê em Portugal. "Sassaricando - E o Rio Inventou a Marchinha", também de Claudio Botelho, lotou seguidas vezes o Teatro Sesc Ginástico do Rio de Janeiro em 2007.

"O que está acontecendo no Brasil é apenas o que já aconteceu no México, Austrália, Chile, todos esses países que se desenvolveram, que é a volta do entretenimento profissional", diz Botelho, que além de ser um defensor da legalização dos cassinos ("sem eles, nunca teríamos tido Carmen Miranda"), prepara uma montagem de "A Noviça Rebelde" para maio. Corroborando sua tese, a China, que vive um momento semelhante ao do Brasil em 2001, vai montar "Les Misérables" com investimento estrangeiro em novembro deste ano.
Mais
Veja fotos do musical "Miss Saigon"
Veja fotos do musical "Os Produtores"
Assista a trechos do musical "West Side Story"
Veja fotos do musical "Aída"

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